O BISTURI I
Primeiro episódio
Esta crónica arde, pica, morde, dói e arranha o seu autor
nos primeiros dois minutos do 25 de Abril
mais enfermo dos últimos trinta e oito
anos de democracia parlamentar...
Nem em estado de analepsia este Cidadão se pode quietar...
Impedido de praticar actividades exteriores, na
perspectiva do intervencionado tratou de relatar na terceira pessoa a quarta
experiência vivida numa valência hospitalar, desmistificando tão-somente
determinados aspectos da intervenção cirúrgica, para o senhor que se segue, poder
encarar o lado positivo dum hipotético encontro imediato do terceiro grau com o
bisturi.
Acrescentaria que em toda esta saga constituída por dois
episódios, apenas noventa e cinco por cento do relato se baseia em factos
verídicos.
Vamos a isto que se faz hora...
Naquela sufocante tarde onde nuvens carregadas resgatavam
as ralas gotas de chuva que salpicavam o casario disperso na verdejante
paisagem, cá o Cidadão
abt assinou o visto de internamento
do Centro Hospitalar do Médio Tejo...
Feita
a recepção e o briefing, este rapazola arrecadou o verde saco de viagem nas
entranhas do estreito cacifo encastrado na branca parede do compartimento mobilado a quatro camas e mesinhas de suporte...
Outros dois fregueses partilhavam esse amplo espaço onde
um televisor vomitava lípidos do Preço Certo
intercalados a insistentes gingles da
querida Júlia que contrastando esta
época de crise económica, instigava o telespectador ao consumo de lacticínios descongestionantes
do trânsito intestinal...
Júlia Pinheiro com prisão de ventre...
Por recomendação do auxiliar, fora trocada a farpela
civil por um quimono branco, algo justo e sarapintado de iniciais CHMT, chegado o momento de repousar os
dorsais sobre o colchão rijamente ortopédico que complementava a estreita cama
hospitalar...
Pela janela o ocaso embrulhava o horizonte enquanto a
máquina de raios catódicos apoiada no suporte articulado que despontava a dois
terços do pé direito, insistia em transmitir cenas de sem jeito...
Enquanto um dos vizinhos dormitava desalmadas
ressonâncias, o outro, firmemente recostado sobre a metade elevada da cama,
esgarrava tédios olhares...
Sem assunto emergente, cá o Cidadão lançou...
-Ó camarada... Aqui os novos inquilinos não têm direito a praxe?
Se o sessentão rubicundo de penca Hitchcock estava calado, a mais silencio se remeteu, libertando flamas dos
profundos e esbugalhados olhos, como se a talhe de foice assim dissesse:
“Este gajo é comunista”
Ao
televisor chegou a transmissão de um jogo de futebol e para a mesa vieram três
bandejas dotadas de leguminosas sopinhas complementadas a peixinho traçado às
postas cozidas com batatinhas e cenoura, maçã golden e papo-seco sem caroço...
O ressonante acordou para a janta e o senhor Hitchcock chegou-se ao prato, recuando
de nariz torcido para a caminha sem trincar a comidinha...
De facto aquilo estava insosso...
Manjava-se a tradicional papinha para doentes, óptima
para substituir anti-hipertensores e
depuralinas recomendadas pela Querida
Júlia...
Depois de tudo mastigado, o ressonante retornou ao vale
dos lençóis, engrenando a primeira, a segunda e a prise dum profundo sono,
retornando os episódios do rapid eye movement...onde vociferava cenas ininteligíveis.
Por seu turno, mister Hitchcock
regressou furtivamente à mesa do passado, despachando a golden em três trincas...
A senhora auxiliar recolheu as bandejas para as
prateleiras do carrinho a pedir
lubrificação, deixando tudo perfeitamente limpo e arrumadinho...
Já acamado, este impaciente deu conta que o diacho do
jogo de futebol tinha dado espaço à dissecante Liga dos Últimos.
A retrospectiva, a expectativa, a frustração, a
exortação, o diagnóstico e o prognóstico da bola comentados por flatulentos presidentes
e sorventes treinadores de pastilha elástica, que não distinguem o singular do plural,
o masculino do feminino, o sujeito do predicado nem os predicados das sujeitas...
Olhando em redor percebia-se que o Hitchcock se estava nas tintas para o esférico, preferindo fixar-se
em qualquer ponto da parede oposta...
O outro canal era suposto passar overdoses de telenovelas
com homens apertando gasganetes a mulheres.
No terceiro seriam as parvoíces dos apanhados sacados dos
vídeos caseiros descarregados na Internet
e apresentados pela cachopa das gâmbias anorécticas e pelo rapazola em
consolidação hormonal.
Como poderia o Cidadão alguma vez gostar disto?!
Suspenso na pega triangular ligada pela correia de lona
ao braço basculante da cama, oscilava o comando dotado de uns quantos botões
que se ligava aos pés da cama por um espiral fio telefónico.
Junto a este, outro fio acabava num interruptor em forma
de pêra... Olhando o nariz adunco do Hitchcock,
lançou o Cidadão:
-Ò camarada! O jogo de futebol Interessa-lhe?
-Quero lá saber...
-Ó camarada! Não esmoreça... Olhe que desde há vinte anos é a
quarta vez que habito esta casa e estou para aqui mais ou menos bem-disposto...
Vá lá! Coração ao largo! Dá-me licença que mude de canal?
-Quero lá saber...
Feitio irascível tinha mister Hitchcock...
Bom...
Decididamente havia
que mudar a frequência...
Não tardaria muito que a RTP-2 transmitisse o jornal das vinte e duas com a Sandra Felgueiras...
O comando à
frente do nariz e à mão de semear...era uma tentação...
Zás!
“O comando é
meu!”
Pressionado um dos botões estremenhos,
foi num truz enquanto os pés ficaram deveras elevados relativamente ao tronco...
Ora bolas!
Aquilo era o comando das básculas da cama...
Havia que fazer descer os pés...
Talvez pressionando o botão do outro extremo...
Gaita!
As costas subiram, só parando quase na vertical...
Ficara enchouriçado... de nalgas afundadas e o restante corpo
erguido em U...
Por um talisco conseguira vislumbrar o olhar esbugalhado
do Hitchcock.
Prontes...
Se os botões das pontas não faziam descer as articulações
só havia que carregar num do meio...
Aquilo começou a subir, a subir, até se imobilizar mais
perto do tecto do que do chão...
Bom...
Quanto
mais mexia no comando, mais a situação se complicava...
Restavam três botões...
Reflectindo melhor...
Se calcasse n um desses botões e como as coisas estavam a
decorrer, o mais provável seria a cama inclinar-se para um dos lados,
despejando cá o Cidadão
no soalho...
Ná!
Não há cá pão pr’a malucos...
Apertou firmemente o interruptor da pêra desencadeando um
estridente besouro que jamais se calou até chegar o enfermeiro de serviço...
-Alguém chamou?
Indagou o assistente, olhando em três direcções...
Bolas! Aquele homem não reparara na situação crítica?
-Fui eu, senhor enfermeiro... Tire-me desta posição, se faz
favor...
-O amigo não pode estar quieto? Veja só o
que arranjou!
-Isto é complicado de se voltar a recolocar na posição inicial?
-Por que mexeu ai?
-É que queria ver a Sandra Felgueiras no noticiário das dez e
supus que isto fosse o comando do televisor...
-Quando necessitar de alguma coisa, chame,
carregando apenas no botão desta pera!
Por obra e graça dos dedos experientes do enfermeiro, a
cama acabou por ficar no plano horizontal e bem perto do solo...
Assim
estava mais confortável...
Subindo para uma cadeira, o clinico sintonizou o canal 2 da RTP onde a Sandra Felgueiras
com seus vivos olhos e enormes lábios de
moranguito pálido nos convictava notícias de última hora.
O camarada Hitchcock
voltara-se de lado, virando as costas ao televisor...
O aparelho orientado de modo a que os pacientes de ambos
os lados vissem as imagens de esguelha, deixara de ter utilidade para a ala hitchcockiana...
O suporte devia rodar...
Saindo da cama, este
impaciente aprontou-se a rodar a base do televisor em cerca de quarenta e cinco graus para a esquerda e
trinta para baixo, orientando o
cinescópio na direcção mais apropriada para que mergulhado em vale de lençóis pudesse
desfrutar do noticiário em total plenitude sem tentação de voltar a mexericar
no comando que bem de frente, oscilava suspenso na pega...
Abalou a Sandrinha
da TV e veio a senhora auxiliar oferecer
cházinho de camomila e bolachinhas pelos três fregueses, um ressonando
estridentemente e o outro em eterna posição lateral de pernas encolhidas e joelhos
junto ao peito!
Mal a senhora deu de caras com o cinescópio fora de
posição, largou o carrinho de mão que em desgovernados centímetros embateu nos
pés da cama, indo ao corredor bradar pelo Firmino!
-Ó Firmino, venha cá que o televisor está outra vez a cair!
O senhor Firmino
teve o cuidado de repor o aparelho na posição inicial, atarraxando
demasiadamente os dois torniquetes do suporte, sem antes ter olhado de soslaio
na direcção cá do Cidadão!...
-O senhor tem aqui um comprimido para tomar
com o chá!
O certo é que depois do senhor Firmino pedir permissão para tal, apagaram-se as luzes, desligou-se
o entretém e ao fim de meia hora uma cobra do camandro apoderou-se do corpo, dando vontade de ferrar no sono.
No silêncio do quarto houve oportunidade de assimilar as vocalizações
do pessoal de serviço, percebendo que naquela casa o pessoal desfrutava de
excelente ambiente laboral onde predominavam os timbres femininos que se
tratavam com respeito e estima familiar num troca de saudações que aparentou a mudança
de turno.
Os braços de Morfeu
encurtaram a noite.
Pelas sete e picos da madrugada, cá o Cidadão acordou
estremunhado com as intermitentes barras fluorescentes encastradas no rebordo
da parede...
chegara o
Uma
enfermeira bem simpática e reboleca ostentando barbelinha de mamã, advertiu
este candidato ao bisturi que não poderia
comer nem beber coisa alguma!
Havia que tirar o rabinho da cama, tomar duche de esfrega
com os produtos higiénicos fornecidos pelo hospital eliminando os
microorganismos mais resistentes e no final, secar o corpinho com o toalhão da
casa.
-Posso lavar a cabeça?
-Pode, sim senhor!
-Ainda bem, que só assim me sinto fresco para ir à faca...
Despido o pijama hospitalar junto à cama, este praça ficou pelos slip’s de lycra negra oferecidos
pela Companheira, coisa que fez
arregalar os olhos do senhor Hitchcock,
engasgar a ressonância do vizinho e rosar um bocadinho as faces da enfermeira
assistente...
-Você não tem preconceitos...
-Pois não, cara senhora, pois não.
De toalhão branco ao ombro este rapaz perdeu-se nos
confins do poliban...
O chuveiro vertia quentes fios de água que sagazes, serpenteavam
da cabeça aos pés...
Água quente é água de doente...
-Senhora enfermeira?!
Gritou cá o Cidadão dentro do poliban...
-Sim? Está com algum problema?
-Será que posso virar a torneira para a água fria?
-Água fria?!
-Sim! Se não trouxer inconvenientes para a minha situação,
preferia tomar duche com água fria...
-Que horror!!! O senhor é louco?
-Quero lá saber se é horror ou não! Só quero é saber se posso...
se nesta situação não me será prejudicial...
-Pode e até é bastante mais saudável do que a água quente! Já vi que
o senhor tem hábitos bastante peculiares! Com este tempo fresco, o senhor
consegue mesmo?!
-E a senhora enfermeira nem sabe da missa metade!
Para início de dia, o esplêndido duche foi uma bênção
refrescante que reprogramou os neurónios, despertando o humor e a boa
disposição de espírito.
Enrolado o toalhão na cintura e saído do balneário,
chegara a ocasião de eliminar o mau hálito...
Regressado à cama, este despreconceituado rapaz constatou que o sorriso da enfermeira
revelara simpatia por este rapaz.
-O senhor vai deixar aqui todos os seus objectos pessoais,
piercing´s, pulseiras, colares, o relógio e depois de vestir estas calças e
esta bata, aguarda aqui deitado que hão-de vir aí os meus colegas para o levar.
Assim foi... Os objectos pessoais tinham ficado em caselas...
As justíssimas calças pregavam-se ao cós e a longa bata era
laçada ao tronco por seis longas tiras de tecido.
Abalou a enfermeira e num vazio de espera, entraram
outros dois enfermeiros que começaram por tratar os camaradas de quarto...
Em cada movimento, por cada mexedela, entre cada agulha,
ambos os pacientes se sugestionavam!
Ai, para aqui!
Aaaaai, para ali!
-Ó senhor Jorge! Mas mal lhe toquei!
-Aaai!
Uns mais sonoros do que outros, havia “ais” suspiros, e assopros
à descrição, de muitos timbres e para todos os gostos!
-Aai!
-Ufff!
-Aaaaii!
No quarto ao lado, o da ala feminina, nada daquilo se
ouvia!
De lá, só conversas amenas e esporádicos silêncios.
Porra para tantos “ais” que até ao Cidadão lhe doíam no psíquico!
Chegada a vez última dos três, foi pendurada uma
garrafinha de soro no mastro da cama, tentando o enfermeiro apanhar uma das
veias nas costas da mão esquerda cá do Cidadão...
Este, ciente de que è detentor de artérias grossas e
esquivas, perguntou ao enfermeiro se por acaso seria estagiário...
Um pouco indignado, o clinico disse que tinha muitos anos
de experiência mas que de facto estava a sentir alguma dificuldade em apanhar a
veia...ao que cá o Cidadão lhe sugeriu que procurasse do lado de
dentro do pulso...
Prontos!
Se o ciberleitor é sugestionável, chegou o momento de se
desligar deste post e viajar para outro sítio da web...
Resolveu prosseguir a leitura?
Cá o Cidadão abt
não se responsabiliza pelas consequências que dai resultem!
-Porque é que o senhor perguntou se sou
estagiário? Acha que não sou competente?
-Não é por isso! É que da última vez que passei por uma situação
análoga, todos os enfermeiros se viram gregos para espetarem os três cateteres
por dia e só uma menina estagiária é que me conseguiu espetar à primeira... Sem
dor nem gemido...
-Tem experiência...
-É a vida... Dessa vez um dos cateteres estava ligado a uma
enorme seringa laranja que foi injectando um líquido ardente durante trinta e
seis horas seguidas cá na veia para baixar o ritmo cardíaco...
-Amiodarona...
-Talvez...veneno de serpente...
-E agora, porque é que você não se queixa?
-Não me queixo nem nunca me queixarei grande coisa porque a dor
é psicológica, reside no nosso cérebro e o trabalho que você está a desenvolver
é para melhorar a minha qualidade de vida.
-Sabe que a sua dor serve de aviso para nos
podermos orientar no tratamento, por isso, se lhe doer, queixe-se!
O certo é que numa pincelada de álcool e três palmadas
depois, a agulha do cateter provocara
uma dor fininha e aguçada, enterrando-se firmemente na veia interna do pulso, passando
o soro a escorrer da garrafinha para o tubinho de cristal onde o cateter se diluía com o sangue que
recuava do pulso!
De seguida os senhores enfermeiros cobriram o corpo deste
praça com espessa colcha de algodão branco, destravaram a cama subindo-lhe os
gradeamentos laterais, ficando cá o Cidadão com a sensação de enjaulamento...
Um gajo não podia sofrer de claustrofobia...
A cama ganhou vida rolando entre pares, saiu do quarto e avançando
silenciosamente por intermináveis corredores em que o Cidadão prostrado de pés para
diante, via plafond's luminosos, aspersores de incêndio, altifalantes encastrados
e juntas do tecto falso movimentarem-se em sentido inverso...
A trepidação miudinha e a viagem na horizontal, enjoavam
qualquer mortal...
Rostos curiosos e fechados de pessoas estranhas cruzavam-se
pelas laterais enquanto o maldito enjoo se fazia sentir, intenso...
O Cidadão lançou:
-Olá galera! Tudo bem-disposto?
Não obtivera resposta.
Rostos das pessoas estranhas e multicolores limitavam-se
à contemplação.
O Cidadão tentou olhar por detrás da própria
nuca, distinguindo o queixo e a bata branca do enfermeiro que empurrava a
maca...
Das outras vezes que se vira numa situação idêntica, foi-lhe
dado um comprimidinho que colocara debaixo da língua e lhe fizera perder a
noção espaço-temporal da coisa...
Devem-se ter esquecido desse procedimento ao que tinha a
vantagem de poder registar o desenrolar dos acontecimentos, in loco.
A caravana entrou no ascensor, induzindo estranho
silêncio dando a noção de que a tranquitana estaria a descender...
Ao abrirem-se as portas na nuca deste rapaz, o conjunto
progrediu em marcha contrária, ou seja, agora rolando no sentido da cabeça para
a frente...
Sempre era melhor assim do que ir com os pés para a
frente...
Em vez de se ver o corredor a vir-se, via-se o corredor a
ir-se...
Enjoava menos...
-São dez horas e onze minutos...
-São dez horas? Pois são! Não lhe dissemos
que tinha de se despojar de todos os objectos pessoais? E traz o relógio
consigo? Esqueceu-se? Onde tem o relógio guardado, senhor?
-Não trago relógio nenhum... Senhores enfermeiros...
-Se não traz relógio, como acertou na hora?
-Foi um relógio branquinho, redondinho com ponteiros e números grossos
e negros que passou por mim e ficou
cravado no cimo da parede lá adiante...
-Livra! O homem tem ideias!
-Pois tem...
Afinal havia outro.
O Cidadão entrou num compartimento onde uma
parga de humanóides envergando batas, máscaras e toucas verdes o esperavam...
A cama foi descendo na horizontal até atingir o nível de
uma placa metálica em tons de verde-garrafa, fazendo recordar o enorme quadro
de lousa que na escola primária fora o terror do Cidadão...
Voluntariosos clínicos tentavam elevar o troco e as
pernas deste, talvez com o intuito de o mudarem para a placa verde...
Sem sucesso...
Tinham sido muitos anos de caminhadas e pese a elegância
aparente, subtraindo a barriga, este corpo era compacto e maciço demais para se
levantar de ânimo leve...
-Ó senhores! A fazerem tanto esforço ainda acabam por dar cabo
da coluna e irem parar ao hospital!!!
Porque é que eu não posso dar um jeito nisto?
-Está bem. Vire-se para
o lado direito. Agora puxe-se para trás.
E assim foi!
Mal deu conta, este impaciente assentara os costados
sobre a placa verde, afinal aquecida...
Dois clínicos cobriram as pernas e metade do tronco com
mantas térmicas forradas a alumínio, fazendo com que a concentração de calor se
elevasse em consideráveis graus centígrados...
Cá o Cidadão atento às manobras, colocou a
imaginação e o humor ao serviço da comunidade, observando...
-Cum raio. Mais pareço um salame pronto a entrar no
microondas... O que vem a ser esta chapa quente?
-É um transfer.
Resposta máscula de alguém que devido à rectro-posição, não se lhe discernira a
fisionomia.
-Ah! Bom... Entendi. Ali adiante aos meus pés deve ser a sala
das autópsias e a seguir a morgue... E no meu lado esquerdo temos o bloco
operatório... Acertei?
-Não acertou. Aliás, só acertou na
segunda parte.
Voltou a soar a tenórica voz grave de trinta jovens
anos, vinda da nuca.
-Ainda bem...
Não se percebeu como, mas o diacho do trasnfer encostou-se pela esquerda a outra mesa branca que subiu alguns
centímetros...
Desta vez a mudança foi diferente.
Sem saber como, de repente estava deitado nessa mesa.
Houve mexedelas na garrafinha do soro e um produto
acoplado à torneira do tubo que ligava ao cateter espinhado no pulso...
Qual serpente, ora sobrepôs-se uma báscula extremada por
luminoso rodízio de projectores...
Outro
braço articulado ostentando uma bandeja creme avançou no lado oposto...
Um carrinho parecido com a mesinha do manjar hospitalar
rolou silencioso até junto aos pés...
De ambos os lados, rostos ocultos em toucas e
verdes batas rodeavam este desgraçado...
O momento aproximara-se...
Um monitor rolou para perto...
Eram colados uma série de finos fios no peito, junto ao
coração e nas laterais do tórax, e uma mola mordendo o indicador esquerdo...
Havia que descontrair...
-Olá! Há muito que eu não era o centro das atenções!...Projectores
de luz só encontro aqui ou nas salas de espectáculo! Poderei afirmar
seguramente que sinto o meu ego plenamente preenchido...
Zero!
Cá o Cidadão não obteve resposta...
Só o bip, bip, bip, bip, vindo de uma espécie de
carregador de baterias com ecrân cheio de gráficos digitais e olhares
compenetrados, emoldurados em rostos sérios, de bocas e narizes encobertos pelo
verde das máscaras, recitando palavras esquisitas como, fórceps... pinça... crile... dilatador... roeder... ganchos...
esterilizador... bisturi... agulha... estilete... seringa... tesoura...
afastador... porta-agulhas... compressas, e que iam enriquecendo o
vocabulário deste vigilante.
Como um só utente dava montes de trabalho a tantos médicos...
Da nuca, lentamente foi surgindo uma máscara daquelas que
caem do tecto dos aviões quando entram em turbulência...
Rodando a cabeça para trás este candidato deu-se conta
que à cabeceira outro clínico se encarregava de aproximar progressivamente a
focinha translúcida...
-Olá! Para que é essa máscara? Compreenda que estou um bocadito
apreensivo com a situação...
-É oxigénio fresquinho...
Ah! O dono da voz!
-Repare... Sinto que tenho os braços a cair... Esta marquesa
deve ser estreita e como eu tenho os ombros largos, os braços vão ficar
pendurados para o chão...
-Não faz mal. Eles não lhe vão fazer
falta agora...
-Mas afinal, o senhor está a aproximar-me cada vez mais essa
mascara da cara?
-É arzinho fresco. Descontraia.
-Descontraído estou eu! Estou é a sentir umas picadas nos
testículos... Isto será normal?
-Uns sentem picadas nos testículos,
outros nas palmas dos pés. É conforme a pessoa. Cada caso é um caso...
-Mas afinal o que faz o senhor aí atrás de... de... de mim?
-Agora, sou o seu anjo da guarda.
-O meu anjo da guarda? Como assim?
-Sou o médico anestesista que o vai
acompanhar durante todo o desenrolar da sua operação e zelar para que tudo lhe
corra bem. Vou vigiar o seu ritmo cardíaco, a sua tensão arterial, as suas
funções vitais, a sua respiração.
-Olhe cá! Sinto os tomates a arrepanharem...será que isto é ao
que se designa de “perder a tesão”?
-Exactamente.
-Diga-me outra coisa. Porque é que me estão a retirar a marquesa
debaixo do corpo?
-O homem não há meio
de induzir.
-Está quase...Está quase...
-Não induzo, mas deduzo. Está... quase... o qu...
Compreendei que esta crónica foi escrita lentamente
e em estado de convalescença, entre dores, ardores, arranhadelas e picadelas,
portanto dai tréguas regressando no próximo post se
assim pretenderdes saber novas do Cidadão abt na ponta do bisturi.
10 comentários:
Olá Cidadão abt bom dia:
Cum catano, este post com esta descrição toda ao mais ínfimo pormenor tem aqui cenas altamente contagiantes com um riso de orelha a orelha das quais destaco esta que para mim foi a que mais me fez rir de partir a moca:
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-Olhe cá! Sinto os tomates a arrepanharem...será que isto é ao que se designa de “perder a tesão”?
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eh..eh..eh..eh..eh..
Mas que alta cena embutida no meio de uma situação destas.
Caramba home, mas que pensamentos tão maus, (não beba dessa água senão a sede nunca mais passa).
A bengala de apoio à velhice será feita de gesso??..
ah..ah..ah..ah..ah..
O gesso amolece, depois enrija e a seguir parte facilmente, cuidado com os barrotes do tecto que são o suporte do andar de cima.
Bem, no meio de tudo isto e com uma aventura destas, o principal é manter-se a boa disposição e ter sangue frio para se enfrentar tudo aquilo que nos aparece pela frente numa situação deste género.
Sei bem o que isso é porque infelizmente já passei por esses momentos mais que uma vez e, muito poderia também dizer sobre tudo o que passei (que foi muito) e o que estará para vir, pois o futuro ninguém o sabe onde quase todo o ser humano está sujeito a passar por momentos desses.
Vale uma nota de 5***** este post pela forma em como ele está elaborado ao pormenor e que (na minha opinião) faria parte de grande sucesso no possível tal livro que se lhe é exigido publicar onde as aventuras e desventuras de vida nele poderiam ser incluídas.
Aguardo ansiosamente o novo capítulo que por certo fará abrir de novo a boca de orelha a orelha.
Por fim (por agora) desejo que tudo esteja a correr pelo melhor no rescaldo dessa aventura no mundo hospitalar onde com a boa disposição à mistura por certo tudo irá dar ao convívio do bem estar e de uma recuperação a 100% agora no seio familiar.
Boas melhoras e força na tecla porque isso, será o bálsamo energético para uma nova vaga de maior força interior desta vida que dia após dia se enfrenta com a cruz ás costas.
Xau xau inté ao próximo episódio.
Hoje, o dia( 25 de Abril),acordou triste ,muito cinzento,como nunca acontecera!O desânimo ,a revolta que "quase" todos sentimos (digo quase,porque ainda há muito boa gente que enriquece à custa dos "esmifrados ")parece ter-me tocado hoje,também,mais do que nunca!
Eis que me surge a ideia brilhante de espreitar o blogue do Cidadão e concluí:ora aqui está uma atitude exemplar !Ao que parece,o cidadão foi operado e o seu humor mantém-se igual.Vamos lá então tentar mudar o pessimismo que hoje me toca.Talvez ,nos próximos tempos ,surja alguma boa operação que mude este ar carrancudo,ameaçador, de Mostrengo...que nos vai afligindo a todos.Talvez o 25 de Abril volte a sorrir....
Obrigada pela boa disposição e desejo que recupere rapidamente.
Olá ciber Aqui-Ali-Acolá!
Há sempre que olhar o lado positivo das situações delicadas.
O bom humor beneficia tanto o próprio como aqueles que o rodeiam, sejam assistentes, amigos ou familiares.
As outras pessoas não têm que levar por tabela com os nossos males e as nossas indisposições.
Acrescentaria mais!
O espírito é tão contagiante quanto um vírus e se for positivista é meio caminho andado na cura dos males físicos.
Supõe pois cá este Cidadão que para alguns, a eventual leitura destes relatos possa constituir uma desmistificação, uma pequena ajuda e um antídoto nesse sentido.
Com o cravo embalsamado, mande sempre bitáitadas!
Olá Maria Marques:
"Hoje, o dia( 25 de Abril),acordou triste ,muito cinzento,como nunca acontecera!"
Observa aqui a Companheira,(timida para a escrita) que no 25 de Abril de 1974, o dia também estava assim um bocadinho cinzento, nublado e chuvoso!
Os latifundiários mudaram de herdades mas os esmifrados são mais do que antes!
Nesta nova geração egocentrista que faz do polegar instrumento de trabalho e do gadjet a realização pessoal, não será fácil encontrar gente com capacidade de se mobilizar em prol de causas ou de ideais...
É mais provável que corressem para as sacadas de Loret d'el Mar!
Se analizarmos as coisas com bons olhos, a recuperação será feita em franca progressão!
Insha'Allah o mesmo sucedesse com os desígnios deste Portugal.
O cravo que empunhei à 38 anos só ainda não murchou na minha lembrança, caso contrário era a singela oferenda para lhe adoçar uma bem humorada e rápida recuperação. Que o cidadão não murche, arrebite sem arrepanhamentos e de férrea saude.
Olá ciber RL:
Infelizmente, hoje o cravo é lembrança para muitos e história para aqueles que na alvorada de Abril não tinham nascido ou traziam a fralda colada ao rabo.
Que o cravo não murche na sua lembrança, para que sirva de oferenda aos enfermos da revolução.
Cidadão,
Ler as suas crónicas, para mim nunca foi dado como tempo perdido.
Nesta tando realista quanto alegórica, realço a passagem da cama articulada que reflecte bem o comportamento de quem não entendendo dum assunto, quanto mais nele mexe, mais estraga.
Excelente prosa que estabelece paralelismos às enfermidades dos ideais de Abril.
O seu relato enquadra-se perfeitamente no clima psicológico que um doente enfrenta a caminho do bloco operatório.
O anjo-da-guarda, garante da vida, está muito bem introduzido.
Gostei bastante deste tema que raramente alguém aborda ou tem a mestria de o relatar publicamente e espero ansiosamente o próximo capítulo.
Decerto que a intervenção cirúrgica não lhe afectou os meandros do humor nem os mistérios da memória.
Rápidas melhoras para o físico, amigo cidadão.
Pois, ciber Artur:
De todos os momentos da vida podemos extrair ensinamentos e que melhor altura político-social para descrever uma situação desta índole?
Como há um vazio por inactividade vai daí, surgiu a ideia de tentar descrever tanto mais autentico quanto o possível o ambiente vivido em condições adversas.
O relato não ser a 100% deve-se ao facto de ocorrerem determinados momentos em que os estímulos não são captados pelos nossos órgãos sensoriais.
Em suma, através desta crónica, supõe cá o Cidadão contribuir com energias positivistas!
Volte sempre pois por aqui não desbaratará o seu tempo em vão...
Fátima:
Enquanto este praça rebusca mistérios nas profundezas do subconsciente, aproveita este bocadinho para lhe agradecer os seus votos de melhoras!
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