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Este militante anti-cinzentista adverte que o blogue poderá conter textos ou imagens socialmente chocantes, pelo que a sua execução incomodará algumas mentalidades mais conservadoras ou sensíveis, não pretendendo pactuar com o padronizado, correndo o risco de se tornar de difícil assimilação e aceitação para alguns leitores! Se isso ocorrer, então estará a alcançar os objectivos pretendidos, agitando consciências acomodadas, automatizadas, padronizadas, politicamente correctas, adormecidas... ou espartilhadas por fórmulas e preconceitos. Embora parte dos seus artigos se possam "condimentar" com alguma "gíria", não confundirá "liberdade de expressão" com libertinagem de expressão, considerando que "a nossa liberdade termina onde começa a liberdade dos outros"(K.Marx). Apresentará o conteúdo dos seus posts de modo satírico, irónico, sarcástico, dinâmico, algo corrosivo, ou profundo e reflexivo, pausado, daí o insistente uso de reticências, para que no termo das suas incursões, os ciberleitores olhem o mundo de uma maneira um pouco diferente... e tendam a "deixá-lo um bocadinho melhor do que o encontraram" (B.Powell). Na coluna à esquerda, o ciberleitor encontrará uma lista de interessantes sítios a consultar, abrangendo distintas correntes político-partidárias ou sociais, que não significará a conotação ou a "rotulagem" do Cidadão abt com alguma dessas correntes... mas tão só a abertura e o consequente o enriquecimento resultantes da análise aos diferentes ideais e correntes de opinião, porquanto os mesmos abordam temas pertinentes, actuais, válidos e úteis, dando especial primazia aos "nossos" blogues autóctones... Uma acutilância aqui, uma ironia ali, uma dica do além... Assim se vai construindo este blogue... Ligue o som e... Boas leituras.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

GRITOS DA MULTIDÃO



GRITOS DA MULTIDÃO 



“A tremer como varas verdes, de cólera e de angústia, olhou à volta.
Um tapume redondo e, do lado de lá, gente, gente, sem acabar.

Com a pata nervosa escarvou a areia do chão.
Um calor de bosta macia correu-lhe pelo rego do servidoiro.

Urinou sem querer.

Gritos da multidão. (…)



…o manequim de lantejoulas caminhava (…), bateu o pé direito no chão e gritou:

- Eh! Boi! Eh! Toiro!

A multidão dava palmas. (…)

Infelizmente, o fantasma, que aparecia e desaparecia no mesmo instante, escondera-se covardemente de novo por detrás da mancha atordoadora.

Os cornos ávidos, angustiados, deram em cor.

Mais palmas ao dançarino.

Miura parou.

 Assim nada o poderia salvar.

À suprema humilhação de estar ali, juntava-se o escárnio de andar a marrar em sombras. (…)

O espectro doirado lá estava sempre.

Pequenino, com ar de troça, …(…)

Sem lhe dar tempo, com quanta alma pôde, Miura lançou-se-lhe à figura, disposto a tudo.

Não trouxesse ele o pano mágico, e veríamos!

Não trazia. 


E, por isso, quando se encontraram e o outro lhe pregou no cachaço, fundas, dolorosas, as duas farpas que erguia nas mãos, tinha-lhe o corno direito enterrado na fundura da barriga mole.

Gritos e relâmpagos escarlates de todos os lados.

Passada a bruma que se lhe fez nos olhos, relanceou a vista pela plateia.

Então?!

Como não recebeu qualquer resposta, desceu solitário à consciência do seu martírio.

Lá levavam o moribundo em braços, e lá saltava na arena outro farsante doirado. (…)

Avançou de novo. 


Os olhos já lhe doíam e a cabeça já lhe andava à roda.

Humilhado, com o sangue a ferver nas veias, escarvou a areia mais uma vez, urinou e roncou, num sofrimento sem limites. (…)

Parou. Mas não acabaria aquele martírio?

Não haveria remédio para semelhante mortificação?

Num último esforço, avançou quatro vezes.

Nada. Apenas palmas ao actor.

Quando? Quando chegaria o fim de semelhante tormento?

Subitamente, o adversário estendeu-lhe diante dos olhos congestionados o brilho frio dum estoque.

Quê?! Pois poderia morrer ali, no próprio sítio da sua humilhação?!

 Os homens tinham dessas generosidades?!

Calada, a lâmina oferecia-se inteira.

Calmamente, num domínio perfeito de si, Miura fitou-a bem. 


Depois, numa arremetida que parecia ainda de luta e era de submissão, entregou o pescoço vencido ao alívio daquele gume."

Excertos de MIURA

In:Bichos”
De Miguel Torga