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Este militante anti-cinzentista adverte que o blogue poderá conter textos ou imagens socialmente chocantes, pelo que a sua execução incomodará algumas mentalidades mais conservadoras ou sensíveis, não pretendendo pactuar com o padronizado, correndo o risco de se tornar de difícil assimilação e aceitação para alguns leitores! Se isso ocorrer, então estará a alcançar os objectivos pretendidos, agitando consciências acomodadas, automatizadas, padronizadas, politicamente correctas, adormecidas... ou espartilhadas por fórmulas e preconceitos. Embora parte dos seus artigos se possam "condimentar" com alguma "gíria", não confundirá "liberdade de expressão" com libertinagem de expressão, considerando que "a nossa liberdade termina onde começa a liberdade dos outros"(K.Marx). Apresentará o conteúdo dos seus posts de modo satírico, irónico, sarcástico, dinâmico, algo corrosivo, ou profundo e reflexivo, pausado, daí o insistente uso de reticências, para que no termo das suas incursões, os ciberleitores olhem o mundo de uma maneira um pouco diferente... e tendam a "deixá-lo um bocadinho melhor do que o encontraram" (B.Powell). Na coluna à esquerda, o ciberleitor encontrará uma lista de interessantes sítios a consultar, abrangendo distintas correntes político-partidárias ou sociais, que não significará a conotação ou a "rotulagem" do Cidadão abt com alguma dessas correntes... mas tão só a abertura e o consequente o enriquecimento resultantes da análise aos diferentes ideais e correntes de opinião, porquanto os mesmos abordam temas pertinentes, actuais, válidos e úteis, dando especial primazia aos "nossos" blogues autóctones... Uma acutilância aqui, uma ironia ali, uma dica do além... Assim se vai construindo este blogue... Ligue o som e... Boas leituras.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

O BISTURI I



O BISTURI I
Primeiro episódio

Esta crónica arde, pica, morde, dói e arranha o seu autor nos primeiros dois minutos do 25 de Abril mais enfermo dos últimos trinta e oito anos de democracia parlamentar...
Nem em estado de analepsia este Cidadão se pode quietar...
Impedido de praticar actividades exteriores, na perspectiva do intervencionado tratou de relatar na terceira pessoa a quarta experiência vivida numa valência hospitalar, desmistificando tão-somente determinados aspectos da intervenção cirúrgica, para o senhor que se segue, poder encarar o lado positivo dum hipotético encontro imediato do terceiro grau com o bisturi.
Acrescentaria que em toda esta saga constituída por dois episódios, apenas noventa e cinco por cento do relato se baseia em factos verídicos.
Vamos a isto que se faz hora...
Naquela sufocante tarde onde nuvens carregadas resgatavam as ralas gotas de chuva que salpicavam o casario disperso na verdejante paisagem, cá o Cidadão abt assinou o visto de internamento do Centro Hospitalar do Médio Tejo...
Feita a recepção e o briefing, este rapazola arrecadou o verde saco de viagem nas entranhas do estreito cacifo encastrado na branca parede do compartimento  mobilado a quatro camas e mesinhas de suporte...
Outros dois fregueses partilhavam esse amplo espaço onde um televisor vomitava lípidos do Preço Certo intercalados a insistentes gingles da querida Júlia que contrastando esta época de crise económica, instigava o telespectador ao consumo de lacticínios descongestionantes do trânsito intestinal...
Júlia Pinheiro com prisão de ventre...
Por recomendação do auxiliar, fora trocada a farpela civil por um quimono branco, algo justo e sarapintado de iniciais CHMT, chegado o momento de repousar os dorsais sobre o colchão rijamente ortopédico que complementava a estreita cama hospitalar...
Pela janela o ocaso embrulhava o horizonte enquanto a máquina de raios catódicos apoiada no suporte articulado que despontava a dois terços do pé direito, insistia em transmitir cenas de sem jeito...
Enquanto um dos vizinhos dormitava desalmadas ressonâncias, o outro, firmemente recostado sobre a metade elevada da cama, esgarrava tédios olhares...
Sem assunto emergente, cá o Cidadão lançou...

-Ó camarada... Aqui os novos inquilinos não têm direito a praxe?

Se o sessentão rubicundo de penca Hitchcock estava calado, a mais silencio se remeteu, libertando flamas dos profundos e esbugalhados olhos, como se a talhe de foice assim dissesse:
“Este gajo é comunista”
Ao televisor chegou a transmissão de um jogo de futebol e para a mesa vieram três bandejas dotadas de leguminosas sopinhas complementadas a peixinho traçado às postas cozidas com batatinhas e cenoura, maçã golden e papo-seco sem caroço...
O ressonante acordou para a janta e o senhor Hitchcock chegou-se ao prato, recuando de nariz torcido para a caminha sem trincar a comidinha...
De facto aquilo estava insosso...
Manjava-se a tradicional papinha para doentes, óptima para substituir anti-hipertensores e depuralinas recomendadas pela Querida Júlia... 
Depois de tudo mastigado, o ressonante retornou ao vale dos lençóis, engrenando a primeira, a segunda e a prise dum profundo sono, retornando os episódios do rapid eye movement...onde vociferava cenas ininteligíveis.
Por seu turno, mister Hitchcock regressou furtivamente à mesa do passado, despachando a golden em três trincas...
A senhora auxiliar recolheu as bandejas para as prateleiras do carrinho a pedir lubrificação, deixando tudo perfeitamente limpo e arrumadinho...
Já acamado, este impaciente deu conta que o diacho do jogo de futebol tinha dado espaço à dissecante Liga dos Últimos.
A retrospectiva, a expectativa, a frustração, a exortação, o diagnóstico e o prognóstico da bola comentados por flatulentos presidentes e sorventes treinadores de pastilha elástica, que não distinguem o singular do plural, o masculino do feminino, o sujeito do predicado nem os predicados das sujeitas...
Olhando em redor percebia-se que o Hitchcock se estava nas tintas para o esférico, preferindo fixar-se em qualquer ponto da parede oposta...
O outro canal era suposto passar overdoses de telenovelas com homens apertando gasganetes a mulheres.
No terceiro seriam as parvoíces dos apanhados sacados dos vídeos caseiros descarregados na Internet e apresentados pela cachopa das gâmbias anorécticas e pelo rapazola em consolidação hormonal.
Como poderia o Cidadão alguma vez gostar disto?!
Suspenso na pega triangular ligada pela correia de lona ao braço basculante da cama, oscilava o comando dotado de uns quantos botões que se ligava aos pés da cama por um espiral fio telefónico.
Junto a este, outro fio acabava num interruptor em forma de pêra... Olhando o nariz adunco do Hitchcock, lançou o Cidadão:

-Ò camarada! O jogo de futebol Interessa-lhe?

-Quero lá saber...

-Ó camarada! Não esmoreça... Olhe que desde há vinte anos é a quarta vez que habito esta casa e estou para aqui mais ou menos bem-disposto... Vá lá! Coração ao largo! Dá-me licença que mude de canal?

-Quero lá saber...

Feitio irascível tinha mister Hitchcock...
Bom...
Decididamente havia que mudar a frequência...
Não tardaria muito que a RTP-2 transmitisse o jornal das vinte e duas com a Sandra Felgueiras...
O comando à frente do nariz e à mão de semear...era uma tentação...
Zás!
“O comando é meu!”
 Pressionado um dos botões estremenhos, foi num truz enquanto os pés ficaram deveras elevados relativamente ao tronco...
Ora bolas!
Aquilo era o comando das básculas da cama...
Havia que fazer descer os pés...
Talvez pressionando o botão do outro extremo...
Gaita!
As costas subiram, só parando quase na vertical...
Ficara enchouriçado... de nalgas afundadas e o restante corpo erguido em U...
Por um talisco conseguira vislumbrar o olhar esbugalhado do Hitchcock.
Prontes...
Se os botões das pontas não faziam descer as articulações só havia que carregar num do meio...
Aquilo começou a subir, a subir, até se imobilizar mais perto do tecto do que do chão...
Bom...
Quanto mais mexia no comando, mais a situação se complicava...
Restavam três botões...
Reflectindo melhor...
Se calcasse n um desses botões e como as coisas estavam a decorrer, o mais provável seria a cama inclinar-se para um dos lados, despejando cá o Cidadão no soalho...
Ná!
Não há cá pão pr’a malucos...
Apertou firmemente o interruptor da pêra desencadeando um estridente besouro que jamais se calou até chegar o enfermeiro de serviço...

-Alguém chamou?

Indagou o assistente, olhando em três direcções...
Bolas! Aquele homem não reparara na situação crítica?

-Fui eu, senhor enfermeiro... Tire-me desta posição, se faz favor...

-O amigo não pode estar quieto? Veja só o que arranjou!

-Isto é complicado de se voltar a recolocar na posição inicial?

-Por que mexeu ai?

-É que queria ver a Sandra Felgueiras no noticiário das dez e supus que isto fosse o comando do televisor...

-Quando necessitar de alguma coisa, chame, carregando apenas no botão desta pera!

Por obra e graça dos dedos experientes do enfermeiro, a cama acabou por ficar no plano horizontal e bem perto do solo...
Assim estava mais confortável...
Subindo para uma cadeira, o clinico sintonizou o canal 2 da RTP onde a Sandra Felgueiras com seus vivos olhos e enormes lábios de moranguito pálido nos convictava notícias de última hora.
O camarada Hitchcock voltara-se de lado, virando as costas ao televisor...
O aparelho orientado de modo a que os pacientes de ambos os lados vissem as imagens de esguelha, deixara de ter utilidade para a ala hitchcockiana...
O suporte devia rodar...
Saindo da cama, este impaciente aprontou-se a rodar a base do televisor em cerca de quarenta e cinco graus para a esquerda e trinta para baixo, orientando o cinescópio na direcção mais apropriada para que mergulhado em vale de lençóis pudesse desfrutar do noticiário em total plenitude sem tentação de voltar a mexericar no comando que bem de frente, oscilava suspenso na pega...
Abalou a Sandrinha da TV e veio a senhora auxiliar oferecer cházinho de camomila e bolachinhas pelos três fregueses, um ressonando estridentemente e o outro em eterna posição lateral de pernas encolhidas e joelhos junto ao peito!
Mal a senhora deu de caras com o cinescópio fora de posição, largou o carrinho de mão que em desgovernados centímetros embateu nos pés da cama, indo ao corredor bradar pelo Firmino!

-Ó Firmino, venha cá que o televisor está outra vez a cair!

O senhor Firmino teve o cuidado de repor o aparelho na posição inicial, atarraxando demasiadamente os dois torniquetes do suporte, sem antes ter olhado de soslaio na direcção cá do Cidadão!...

-O senhor tem aqui um comprimido para tomar com o chá!

O certo é que depois do senhor Firmino pedir permissão para tal, apagaram-se as luzes, desligou-se o entretém e ao fim de meia hora uma cobra do camandro apoderou-se do corpo, dando vontade de ferrar no sono.
No silêncio do quarto houve oportunidade de assimilar as vocalizações do pessoal de serviço, percebendo que naquela casa o pessoal desfrutava de excelente ambiente laboral onde predominavam os timbres femininos que se tratavam com respeito e estima familiar num troca de saudações que aparentou a mudança de turno.
Os braços de Morfeu encurtaram a noite.
Pelas sete e picos da madrugada, cá o Cidadão acordou estremunhado com as intermitentes barras fluorescentes encastradas no rebordo da parede...
chegara o
Uma enfermeira bem simpática e reboleca ostentando barbelinha de mamã, advertiu este candidato ao bisturi que não poderia comer nem beber coisa alguma!
Havia que tirar o rabinho da cama, tomar duche de esfrega com os produtos higiénicos fornecidos pelo hospital eliminando os microorganismos mais resistentes e no final, secar o corpinho com o toalhão da casa.

-Posso lavar a cabeça?

-Pode, sim senhor!

-Ainda bem, que só assim me sinto fresco para ir à faca...

Despido o pijama hospitalar junto à cama, este praça ficou pelos slip’s de lycra negra oferecidos pela Companheira, coisa que fez arregalar os olhos do senhor Hitchcock, engasgar a ressonância do vizinho e rosar um bocadinho as faces da enfermeira assistente...

-Você não tem preconceitos...

-Pois não, cara senhora, pois não.

De toalhão branco ao ombro este rapaz perdeu-se nos confins do poliban...
O chuveiro vertia quentes fios de água que sagazes, serpenteavam da cabeça aos pés...
Água quente é água de doente...

-Senhora enfermeira?!

Gritou cá o Cidadão dentro do poliban...

-Sim? Está com algum problema?

-Será que posso virar a torneira para a água fria?

-Água fria?!

-Sim! Se não trouxer inconvenientes para a minha situação, preferia tomar duche com água fria...

-Que horror!!! O senhor é louco?

-Quero lá saber se é horror ou não! Só quero é saber se posso... se nesta situação não me será prejudicial...

-Pode e até é bastante mais saudável do que a água quente! Já vi que o senhor tem hábitos bastante peculiares! Com este tempo fresco, o senhor consegue mesmo?!

-E a senhora enfermeira nem sabe da missa metade!

Para início de dia, o esplêndido duche foi uma bênção refrescante que reprogramou os neurónios, despertando o humor e a boa disposição de espírito.
Enrolado o toalhão na cintura e saído do balneário, chegara a ocasião de eliminar o mau hálito...
Regressado à cama, este despreconceituado rapaz constatou que o sorriso da enfermeira revelara simpatia por este rapaz.

-O senhor vai deixar aqui todos os seus objectos pessoais, piercing´s, pulseiras, colares, o relógio e depois de vestir estas calças e esta bata, aguarda aqui deitado que hão-de vir aí os meus colegas para o levar.

Assim foi... Os objectos pessoais tinham ficado em caselas...
As justíssimas calças pregavam-se ao cós e a longa bata era laçada ao tronco por seis longas tiras de tecido.
Abalou a enfermeira e num vazio de espera, entraram outros dois enfermeiros que começaram por tratar os camaradas de quarto...
Em cada movimento, por cada mexedela, entre cada agulha, ambos os pacientes se sugestionavam!
Ai, para aqui!
Aaaaai, para ali!

-Ó senhor Jorge! Mas mal lhe toquei!

-Aaai!

Uns mais sonoros do que outros, havia “ais” suspiros, e assopros à descrição, de muitos timbres e para todos os gostos!

-Aai!

-Ufff!

-Aaaaii!

No quarto ao lado, o da ala feminina, nada daquilo se ouvia!
De lá, só conversas amenas e esporádicos silêncios.
Porra para tantos “ais” que até ao Cidadão lhe doíam no psíquico!
Chegada a vez última dos três, foi pendurada uma garrafinha de soro no mastro da cama, tentando o enfermeiro apanhar uma das veias nas costas da mão esquerda cá do Cidadão...
Este, ciente de que è detentor de artérias grossas e esquivas, perguntou ao enfermeiro se por acaso seria estagiário...
Um pouco indignado, o clinico disse que tinha muitos anos de experiência mas que de facto estava a sentir alguma dificuldade em apanhar a veia...ao que cá o Cidadão lhe sugeriu que procurasse do lado de dentro do pulso...
Prontos!
Se o ciberleitor é sugestionável, chegou o momento de se desligar deste post e viajar para outro sítio da web...
Por exemplo para o Passo a Passo abt.
Resolveu prosseguir a leitura?
 Cá o Cidadão abt não se responsabiliza pelas consequências que dai resultem!

-Porque é que o senhor perguntou se sou estagiário? Acha que não sou competente?

-Não é por isso! É que da última vez que passei por uma situação análoga, todos os enfermeiros se viram gregos para espetarem os três cateteres por dia e só uma menina estagiária é que me conseguiu espetar à primeira... Sem dor nem gemido...

-Tem experiência...

-É a vida... Dessa vez um dos cateteres estava ligado a uma enorme seringa laranja que foi injectando um líquido ardente durante trinta e seis horas seguidas cá na veia para baixar o ritmo cardíaco...

-Amiodarona...

-Talvez...veneno de serpente...

-E agora, porque é que você não se queixa?

-Não me queixo nem nunca me queixarei grande coisa porque a dor é psicológica, reside no nosso cérebro e o trabalho que você está a desenvolver é para melhorar a minha qualidade de vida.

-Sabe que a sua dor serve de aviso para nos podermos orientar no tratamento, por isso, se lhe doer, queixe-se!

O certo é que numa pincelada de álcool e três palmadas depois, a agulha do cateter provocara uma dor fininha e aguçada, enterrando-se firmemente na veia interna do pulso, passando o soro a escorrer da garrafinha para o tubinho de cristal onde o cateter se diluía com o sangue que recuava do pulso!
De seguida os senhores enfermeiros cobriram o corpo deste praça com espessa colcha de algodão branco, destravaram a cama subindo-lhe os gradeamentos laterais, ficando cá o Cidadão com a sensação de enjaulamento...
Um gajo não podia sofrer de claustrofobia...
A cama ganhou vida rolando entre pares, saiu do quarto e avançando silenciosamente por intermináveis corredores em que o Cidadão prostrado de pés para diante, via plafond's luminosos, aspersores de incêndio, altifalantes encastrados e juntas do tecto falso movimentarem-se em sentido inverso...
A trepidação miudinha e a viagem na horizontal, enjoavam qualquer mortal...
Rostos curiosos e fechados de pessoas estranhas cruzavam-se pelas laterais enquanto o maldito enjoo se fazia sentir, intenso...
O Cidadão lançou:

-Olá galera! Tudo bem-disposto?

Não obtivera resposta.
Rostos das pessoas estranhas e multicolores limitavam-se à contemplação.
O Cidadão tentou olhar por detrás da própria nuca, distinguindo o queixo e a bata branca do enfermeiro que empurrava a maca...
Das outras vezes que se vira numa situação idêntica, foi-lhe dado um comprimidinho que colocara debaixo da língua e lhe fizera perder a noção espaço-temporal da coisa...
Devem-se ter esquecido desse procedimento ao que tinha a vantagem de poder registar o desenrolar dos acontecimentos, in loco.
A caravana entrou no ascensor, induzindo estranho silêncio dando a noção de que a tranquitana estaria a descender...
Ao abrirem-se as portas na nuca deste rapaz, o conjunto progrediu em marcha contrária, ou seja, agora rolando no sentido da cabeça para a frente...
Sempre era melhor assim do que ir com os pés para a frente...
Em vez de se ver o corredor a vir-se, via-se o corredor a ir-se...
Enjoava menos...

-São dez horas e onze minutos...

-São dez horas? Pois são! Não lhe dissemos que tinha de se despojar de todos os objectos pessoais? E traz o relógio consigo? Esqueceu-se? Onde tem o relógio guardado, senhor?

-Não trago relógio nenhum... Senhores enfermeiros...

-Se não traz relógio, como acertou na hora?

-Foi um relógio branquinho, redondinho com ponteiros e números grossos e negros  que passou por mim e ficou cravado no cimo da parede lá adiante...

-Livra! O homem tem ideias!

-Pois tem...

Afinal havia outro.
O Cidadão entrou num compartimento onde uma parga de humanóides envergando batas, máscaras e toucas verdes o esperavam...
A cama foi descendo na horizontal até atingir o nível de uma placa metálica em tons de verde-garrafa, fazendo recordar o enorme quadro de lousa que na escola primária fora o terror do Cidadão...
Voluntariosos clínicos tentavam elevar o troco e as pernas deste, talvez com o intuito de o mudarem para a placa verde...
Sem sucesso...
Tinham sido muitos anos de caminhadas e pese a elegância aparente, subtraindo a barriga, este corpo era compacto e maciço demais para se levantar de ânimo leve...

-Ó senhores! A fazerem tanto esforço ainda acabam por dar cabo da coluna e irem  parar ao hospital!!! Porque é que eu não posso dar um jeito nisto?

-Está bem. Vire-se para o lado direito. Agora puxe-se para trás.

E assim foi!
Mal deu conta, este impaciente assentara os costados sobre a placa verde, afinal aquecida...
Dois clínicos cobriram as pernas e metade do tronco com mantas térmicas forradas a alumínio, fazendo com que a concentração de calor se elevasse em consideráveis graus centígrados...
Cá o Cidadão atento às manobras, colocou a imaginação e o humor ao serviço da comunidade, observando...

-Cum raio. Mais pareço um salame pronto a entrar no microondas... O que vem a ser esta chapa quente?

-É um transfer.

Resposta máscula de alguém que devido à rectro-posição, não se lhe discernira a fisionomia.

-Ah! Bom... Entendi. Ali adiante aos meus pés deve ser a sala das autópsias e a seguir a morgue... E no meu lado esquerdo temos o bloco operatório... Acertei?

-Não acertou. Aliás, só acertou na segunda parte.

Voltou a soar a tenórica voz grave de trinta jovens anos, vinda da nuca.

-Ainda bem...

Não se percebeu como, mas o diacho do trasnfer encostou-se pela esquerda a outra mesa branca que subiu alguns centímetros...
Desta vez a mudança foi diferente.
Sem saber como, de repente estava deitado nessa mesa.
Houve mexedelas na garrafinha do soro e um produto acoplado à torneira do tubo que ligava ao cateter espinhado no pulso...
Qual serpente, ora sobrepôs-se uma báscula extremada por luminoso rodízio de projectores...
Outro braço articulado ostentando uma bandeja creme avançou no lado oposto...
Um carrinho parecido com a mesinha do manjar hospitalar rolou silencioso até junto aos pés...
De ambos os lados, rostos ocultos em toucas e verdes batas rodeavam este desgraçado...
O momento aproximara-se...
Um monitor rolou para perto...
Eram colados uma série de finos fios no peito, junto ao coração e nas laterais do tórax, e uma mola mordendo o indicador esquerdo...
Havia que descontrair...

-Olá! Há muito que eu não era o centro das atenções!...Projectores de luz só encontro aqui ou nas salas de espectáculo! Poderei afirmar seguramente que sinto o meu ego plenamente preenchido...

Zero!
Cá o Cidadão não obteve resposta...
Só o bip, bip, bip, bip, vindo de uma espécie de carregador de baterias com ecrân cheio de gráficos digitais e olhares compenetrados, emoldurados em rostos sérios, de bocas e narizes encobertos pelo verde das máscaras, recitando palavras esquisitas como, fórceps... pinça... crile... dilatador... roeder... ganchos... esterilizador... bisturi... agulha... estilete... seringa... tesoura... afastador... porta-agulhas... compressas, e que iam enriquecendo o vocabulário deste vigilante.
Como um só utente dava montes de trabalho a tantos médicos...
Da nuca, lentamente foi surgindo uma máscara daquelas que caem do tecto dos aviões quando entram em turbulência...
Rodando a cabeça para trás este candidato deu-se conta que à cabeceira outro clínico se encarregava de aproximar progressivamente a focinha translúcida...

-Olá! Para que é essa máscara? Compreenda que estou um bocadito apreensivo com a situação...

-É oxigénio fresquinho...

Ah! O dono da voz!

-Repare... Sinto que tenho os braços a cair... Esta marquesa deve ser estreita e como eu tenho os ombros largos, os braços vão ficar pendurados para o chão...

-Não faz mal. Eles não lhe vão fazer falta agora...

-Mas afinal, o senhor está a aproximar-me cada vez mais essa mascara da cara?

-É arzinho fresco. Descontraia.

-Descontraído estou eu! Estou é a sentir umas picadas nos testículos... Isto será normal?

-Uns sentem picadas nos testículos, outros nas palmas dos pés. É conforme a pessoa. Cada caso é um caso...

-Mas afinal o que faz o senhor aí atrás de... de... de mim?

-Agora, sou o seu anjo da guarda.

-O meu anjo da guarda? Como assim?

-Sou o médico anestesista que o vai acompanhar durante todo o desenrolar da sua operação e zelar para que tudo lhe corra bem. Vou vigiar o seu ritmo cardíaco, a sua tensão arterial, as suas funções vitais, a sua respiração.

-Olhe cá! Sinto os tomates a arrepanharem...será que isto é ao que se designa de “perder a tesão”?

-Exactamente.

-Diga-me outra coisa. Porque é que me estão a retirar a marquesa debaixo do corpo?

-O homem não há meio de induzir.

-Está quase...Está quase...

-Não induzo, mas deduzo. Está... quase... o qu...

Compreendei que esta crónica foi escrita lentamente e em estado de convalescença, entre dores, ardores, arranhadelas e picadelas, portanto dai tréguas regressando no próximo post se assim pretenderdes saber novas do Cidadão abt na ponta do bisturi.